“O bullying está dentro da nossa sociedade, na própria família, que usa práticas pedagógicas verticais autoritárias”
Pedro Guareschi é professor titular da PUC-RS e membro do Conselho Consultivo do Projeto Criança e Consumo, além de ser consultor do Secretariado Internacional de Justiça e Paz, da Caritas Internationalis.
Pós-doutor em Psicologia Social pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), defende uma educação mais libertadora, baseada no diálogo e na interação entre os diversos saberes de cada ser humano. Acredita que a verticalização da educação é, por si, uma violência contra crianças e adolescentes.
Segundo ele, a prática pedagógica brasileira ainda reflete autoritarismo, configurando o que chama de bullying pedagógico. E nesta entrevista ao Criança e Consumo afirma: “A escola reproduz as relações de um sistema social vertical, que não condiz com a democracia”.
O senhor publicou o livro “Bullying, mais sério do que se imagina”, em parceria com Michele Reis da Silva. Esse é um fenômeno recente?
Eu penso que sempre existiram relações de autoritarismo e de determinada violência entre os seres humanos. Ultimamente, começou a se prestar mais atenção a isso na escola; o projeto pedagógico passou a perceber e tentar evitar isso no ambiente escolar. Foi desse processo que nasceu a palavra bullying, que seria a demonstração de força e pressão, violência. Essas relações de violência são muito mais sutis e profundas do que a simples relação com a agressão física, pois existe também a relação verbal de violência, na qual pessoas começam a rotular outras pessoas com apelidos. E ainda existe uma relação violenta que consiste na maneira como se ensina, que é o bullying didático ou pedagógico.
Nas teorias de educação, pode-se dizer que existem duas grandes matrizes pedagógicas. Uma delas chamamos de comportamentalista, baseada principalmente nos psicólogos do início do século XX. Eles dizem o seguinte: passamos o conhecimento de um para o outro, daquele que sabe para aqueles que não sabem. O que implica essa matriz? Implica sempre uma posição vertical. Uma pesquisa feita aqui em Porto Alegre mostrou que as crianças apontavam aquele que sabia como aquele que era bom, bonito, rico. E aquele que não sabia como mau, feio e ruim. Então, a criança vai colocando o mundo na posição vertical – em cima os bons e ricos, embaixo os que não são.
Isso mostrou que, na verdade, podemos aprender de outra maneira. O ser humano tem a sua consciência, o seu saber. Sempre que uma criança nasce, ela começa a interagir com os outros e com objetos, e assim vai montando o mundo. Isso é saber, é experiência; a criança já chega ao mundo aprendendo, e aprendizagem não é apenas constatar um conhecimento, mas é tentar conhecer qual é o saber da pessoa ao meu lado. E aí sim problematizar para que a pessoa comece a agir e se tornar sujeita da sua aprendizagem. Isso é Paulo Freire [educador brasileiro que é uma das principais referências da pedagogia].
A primeira teoria, que eu chamo de vertical, implica numa relação de autoritarismo. A criança introjeta essa lógica impositiva e sofre, de início, com essa relação de força que é o bullying pedagógico. Esse processo é muito sutil por parte do ensino, mas depois reflete em como muitas pessoas se relacionam com a violência e assumem uma postura autoritária. De uma maneira ou outra, mostram que elas acreditam ter conhecimento melhores ou maneiras de viver melhor. No livro “Bullying, mais sério do que se imagina”, eu discuto exatamente essa questão, pois a maioria das pessoas trata o bullying na relação entre crianças e jovens e como elas vão se rotulando, mas a coisa é muito mais séria. Está dentro da nossa sociedade, na própria família, que usa práticas pedagógicas verticais autoritárias.
E não há essa percepção na escola atual?
Não há essa percepção porque os professores e educadores também estão nesse contexto e percebem o mundo de maneira autoritária. Isso está enraizado na nossa sociedade. Mas, na realidade, ninguém sabe dizer que um sabe mais e o outro sabe menos. Paulo Freire tem uma frase poderosíssima que é o fundamento ético mais importante da escola: “Não há saber melhor ou pior, há saberes diferentes”. Esse é um princípio cientificamente comprovado. A Editora Vozes acabou de publicar o livro de Sandra Jovchelovitch, “Os Contextos do Saber”, no qual ela analisa lindamente o saber e mostra que implica paixão, emoção, que o saber impacta a história de vida das pessoas. Essa nova pedagogia é libertadora, pois mostra que não se pode falar em um saber melhor ou pior.
O bullying pedagógico também é sintoma de algo maior, de como se estabelece as relações econômicas e sociais, não?
A sociedade capitalista criou-se dentro de uma estrutura onde há os que têm e os que não têm. Então, os que têm passaram a ser os bons, aqueles que sabem, e a escola reproduz as relações de um sistema social vertical, que não condiz com a democracia. A democracia implica que todos tenham voz, direito de falar, expressão, opinião… Mas veja a mídia brasileira. Na Inglaterra, uma notícia contempla várias opiniões e mostra todo o contexto de determinado assunto para o que espectador/leitor forme uma opinião. Na nossa mídia não. A notícia é muito mais curta e os locutores falam como se fossem donos da verdade e do conhecimento. Aí se revela uma prática totalmente autoritária, que reproduz essas relações verticais. Então, em tudo parece haver aquele que sabe e aquele que não sabe: o padre sabe, o fiel não sabe; o professor sabe, o aluno não sabe; o pai sabe ,o filho não sabe. E o bullying pedagógico está dentro desse grande contexto. Penso que a escola deveria ser um laboratório, um espaço para práticas igualitárias.
Nesse sentido, percebemos a grande importância de Paulo Freire. Dos diversos livros escritos por ele, alguns trazem no título a palavra “pedagogia” – “Pedagogia da Pergunta”, “Pedagogia da Indignação”, “Pedagogia do Oprimido”. O que ele queria dizer com isso? O conteúdo mais importante na escola não é o que é dito, é como se diz; é a pedagogia.
Já existem muitos estudos e muitos teóricos que vêm alertando para a necessidade de uma educação mais libertadora há décadas. Por que continua do mesmo jeito?
A gente vai crescendo e vai questionando. E só agora estamos, de fato, percebendo as conseqüências dessa educação autoritária. Transformar essa realidade é necessário e é trabalho das pessoas que querem realmente uma igualdade, um respeito. Isso é uma conquista lenta, gradual, até porque muita gente chega a certa idade e não abre mão dessa autoridade. Uma mudança de postura, de compreensão de mundo, será impossível se não entendermos a importância do meio ambiente, da cultura, do diálogo.
E com relação aos casos cada vez mais crescentes de bullying eletrônico, em que muitas vezes há uma situação de troca de agressões e em outras não necessariamente, mas que também se configuram como uma violência velada? Esse foi o caso de dois episódios recentes em que meninos e meninas de 12 ou 13 anos se filmaram no banheiro da escola fazendo sexo.
Hoje, todos nós temos mais de um endereço: o endereço geográfico e o eletrônico. As pessoas, ao invés de irem para a casa uns dos outros, se comunicam por e-mail. O maior índice de suicídio entre jovens é devido ao bullying eletrônico. Um grupo começa a seguir determinada pessoa, a mandar mensagens agressivas – que têm um impacto como se fosse uma violência física – , inclusive sugerindo que ela se mate. Infelizmente, essa violência se reproduz de forma muito rápida.
Muita gente não faz ideia de quão séria é essa questão. Meninas e meninas têm essa preocupação de se resguardar para não serem filmados, porque o vídeo se espalha e todo mundo fica sabendo. E ao mesmo tempo, as empresas de internet, como o Google, simplesmente dizem que não são responsáveis pelo conteúdo.
Nesse sentido, qual é a opinião do senhor com relação à postura das empresas?
Essa questão precisa ser regulamentada. O problema no Brasil é que tudo que não está regulamentado não vale – a ética confunde-se com a lei. É ético o que está na legislação, o que não está pode ser feito. Só que a ética está nas ações humanas. Não deveríamos precisar esperar um código penal para punir determinadas coisas.
Muitos especialistas afirmam que um dos grandes desafios a serem superados é o distanciamento entre educadores, empresas, legisladores e todos que trabalham com a proteção da criança e o que, de fato, é a criança. O senhor concorda?
Concordo. Mas onde está o erro? Para mim, o erro está em insistir nesse pressuposto de que a criança não sabe. Ela é julgada dentro dos parâmetros do adulto. Paulo Freire, genial, diz que o ato educativo, é um ato Pascal. O que é isso? Páscoa é um processo de passar do negativo para o positivo; é passagem, que no Cristianismo é passar da morte para a vida. Então o que é o ato pascal educativo? O educador coloca o seu saber para “morrer” no seu referencial teórico evidencial – o que é extremamente difícil – para entrar em contato com a criança e ver qual é o referencial, qual o esquema mental, cognitivo, dela. Assim, é possível estabelecer um diálogo para entender qual é o mundo da criança. Isso exige humildade, tempo, coragem. Eu tenho quarenta anos de escola e acho que o mais difícil é escutar.
As crianças que têm uma referência de ensino extremamente vertical e autoritário, que adultos serão no futuro?
A gente percebe ou supõe que elas vão repetir o esquema que elas aprenderam. E isso se reflete em todas as relações que vão estabelecer no futuro.
Fonte: Instituto Alana
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