Fernando SabinoA Volta por Cima"
e extraído de "Fernando Sabino - Obra Reunida, Vol. III",
Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1996, pág.611.
JÁ SE TORNOU HÁBITO MEU, em meio a uma conversa, preceder algum
comentário por uma introdução:
— Como dizia meu pai...
Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira
coloquial de dar ênfase a alguma opinião.
De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso
pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava
dizer. Isso significará talvez — Deus queira — insensivelmente vou me tornando
com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me
identificando com a herança espiritual que dele recebi.
Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em
semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um
gesto seu. Ao formular uma idéia, percebo que estou concebendo, para nortear
meu pensamento, um princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido
inspirado por sua presença dentro de mim.
— No fim tudo dá certo...
Ainda ontem eu tranqüilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que
repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar
travesso:
— Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim.
Gosto de evocar a figura mansa de Seu Domingos, a quem chamávamos paizinho, a
subir pausadamente a escada da varanda de nossa casa, todos os dias, ao cair da
tarde, egresso do escritório situado no porão. Ou depois do jantar, sentado com
minha mãe no sofá de palhinha da varanda, como namorados, trocando notícias do
dia. Os filhos guardavam zelosa distância, até que ela ia aos seus afazeres e
ele se punha à disposição de cada um, para ouvir nossos problemas e ajudar a
resolvê-los. Finda a última audiência, passava a mão no chapéu e na bengala e
saía para uma volta, um encontro eventual com algum amigo. Regressava
religiosamente uma hora depois, e tendo descido a pé até o centro, subia sempre
de bonde. Se acaso ainda estávamos acordados, podíamos contar com o saquinho de
balas que o paizinho nunca deixava de trazer.
Costumava se distrair realizando pequenos consertos domésticos: uma bóia de
descarga, a bucha de uma torneira, um fusível queimado. Dispunha para isso da
necessária habilidade e de uma preciosa caixa de ferramentas em que ninguém
mais podia tocar. Aprendi com ele como é indispensável, para a boa ordem da
casa, ter à mão pelo menos um alicate e uma chave de fenda. Durante algum tempo
andou às voltas com o velho relógio de parede que fora de seu pai, hoje me
pertence e amanhã será de meu filho: estava atrasando. Depois de remexer
durante vários dias em suas entranhas, deu por findo o trabalho, embora ao
remontá-lo houvesse sobrado umas pecinhas, que alegou não fazerem falta. O
relógio passou a funcionar sem atrasos, e as batidas a soar em horas
desencontradas. Como, aliás, acontece até hoje.
Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser
indício de paz de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante
de algum aborrecimento.
— As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem.
Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a
que não se poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de
nossa vontade não poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais
fosse assim eloqüente em suas conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo,
eivadas de certo ceticismo preventivo ante as esperanças vãs:
— O que não tem solução, solucionado está.
E tudo que acontece é bom — talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de
afirmar isso, como seu filho Gerson, mas não vacilava em sustentar que toda
mudança é para melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser
que mude, não podendo fazer nada para isso, espere, que mudará por si.
Às vezes seus princípios pareciam confundir-se com os da própria sabedoria
mineira: esperar pela cor da fumaça, não dar passo maior do que as pernas,
dormir no chão para não cair da cama. Os dele eram mais singelos:
— Mais vale um apertinho agora que um apertão o resto da vida.
— Negócio demorado acaba não saindo.
— Dinheiro bom em coisa boa.
— Antes de entrar, veja por onde vai sair.
Um dia me disse, ao me surpreender tentando armar um brinquedo qualquer com
mãos desajeitadas:
— Meu filho, tudo que é bem feito se faz com os dedos, não com as mãos.
Tenho tido ocasião ao longo da vida de observar como é procedente este seu
ensinamento. A mão é grossa, pesada, insensível. Se não fossem os dedos de nada
serviria, a não ser para dar bofetadas. Os dedos são refinados, sensitivos, e a
eles devemos tudo o que é bem feito e acabado: do mais requintado trabalho
manual às mais complicadas operações, da mais fina sensação do tacto à mais
terna das carícias.
— Se o cafezinho foi bom, melhor não aceitar o segundo: será sempre pior que o
primeiro.
Como tudo mais nessa vida: uma viagem, uma mulher: não repetir, pois a emoção
jamais será a mesma da primeira vez. E não desanimar, pois se nascemos nus e
estamos vestidos, já estamos no lucro. Nada neste mundo é cem por cento
perfeito. Se contamos com mais de cinqüenta por cento, também já estamos no
lucro. Quando conseguimos o que é apenas bom, naturalmente devemos continuar
aspirando o melhor, se possível - mas perfeição absoluta, só Deus. E creio que
Seu Domingos, homem íntegro, reto e temente a Deus, hoje em Sua companhia, não
consideraria sacrilégio comentar, naquele seu jeito ladino:
— E assim mesmo, olhe lá...
Seus conselhos eram de tamanha simplicidade que tinham a força de provérbios
nascidos da voz do povo: nada como um dia depois do outro, um lugar para cada
coisa e cada coisa em seu lugar, tudo tem seu tempo. Fosse ele influenciado por
leituras piedosas, poderíamos mesmo detectar, aqui e ali, vestígios de
inspiração bíblica: tempo de semear, tempo de colher...
— É o que nos acontece.
Há uma diferença sutil entre admitir que as coisas são como são, não como
deviam ser, e reconhecer que é o que nos acontece. Aqui, o comentário não
pretendia refletir a impossibilidade de modelar (com os dedos) os fatos de
acordo com a nossa vontade, mesmo que esta esteja certa. Exprime antes a
humilde aceitação da nossa precária condição humana, como frágeis criaturas de
Deus. Procura se solidarizar com a desgraça alheia, como a dizer que também
estamos sujeitos a ela, somos todos irmãos na mesma atribulação. É o que nos
acontece.
Portanto, alegremo-nos! Uma amiga minha, que não o conheceu, busca nele se
inspirar quando afirma, sempre que se vê diante de algum contratempo:
— Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar o meu bom humor.
Acabei levando esta disposição de minha amiga às últimas conseqüências: o mais
importante é não perder a capacidade de rir de mim mesmo. Como Cartola e Carlos
Cachaça naquele samba, às vezes dou gargalhadas pensando no meu passado.. . E
cada vez acredito mais no ensinamento recebido não sei se de meu pai ou
diretamente de Confúcio, segundo o qual há várias maneiras de realizar um
desejo, sendo uma delas renunciar a ele. Como adverte outro sábio, se desejamos
obstinadamente alguma coisa, é melhor tomar cuidado, porque pode nos suceder a
infelicidade de consegui-la.
Tudo isso que de uns tempos para cá vem me vem ocorrendo, às vezes
inconscientemente, como legado de meu pai, teve seu coroamento há poucos dias,
quando eu ia caminhando distraído pela praia. Revirava na cabeça, não sei a que
propósito, uma frase ouvida desde a infância e que fazia parte de sua
filosofia: não se deve aumentar a aflição dos aflitos. Esta máxima me conduziu
a outra, enunciada por Carlos Drummond de Andrade no filme que fiz sobre ele, a
qual certamente Seu Domingos perfilharia: não devemos exigir das pessoas mais
do que elas podem dar. De repente fui fulminado por uma verdade tão absoluta
que tive de parar, completamente zonzo, fechando os olhos para entender melhor.
No entanto era uma verdade evangélica, de clareza cintilante como um raio de
sol, cheguei a fazer uma vênia de gratidão a Seu Domingos por me havê-la
enviado:
Só há um meio de resolver qualquer problema nosso: é resolver primeiro o do
outro.
Com o tempo, a cidade foi tomando conhecimento do seu bom senso, da experiência
adquirida ao longo de uma vida sem maiores ambições: Seu Domingos, além de
representante de umas firmas inglesas, era procurador de partes — solene
designação para uma atividade que hoje talvez fosse referida como a de um
despachante. A princípio os amigos, conhecidos, e depois até desconhecidos
passaram a procurá-lo para ouvir um conselho ou receber dele uma orientação.
Era de se ver a romaria no seu escritório todas as manhãs: um funcionário que
dera desfalque, uma mulher abandonada pelo marido, um pai agoniado com
problemas do filho — era gente assim que vinha buscar com ele alívio para a sua
dúvida, o seu medo, a sua aflição. O próprio Governador, que não o conhecia
pessoalmente, certa vez o consultou através de um secretário, sobre questão
administrativa que o atormentava. Não se falando nos filhos: mesmo depois de
ter saído de casa, mais de uma vez tomei trem ou avião e fui colher uma palavra
sua que hoje tanta falta me faz.
Resta apenas evocá-la, como faço agora, para me servir de consolo nas horas
más. No momento, ele próprio está aqui a meu lado, com o seu sorriso bom.